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Entrevista A Pet's Dream para o CHV - Centro Hospitalar Veterinário
Abril de 2013

Pessoas & Bichos # 2

 

“Não desista do seu amigo porque ele nunca desistira de si”, lê-se na missão da Pet’s Dream. Esta empresa recém-criada resulta da ligação perfeita entre Zeus, um Labrador adorável e extremamente porfissional, Miguel, estudante de Medicina Veterinária, treinador canino e um verdadeiro apaixonado por cães, e a Filipa, bióloga, mestranda em Veterinária e o suporte organizacional da Pet’s dream. Esta empresa é, pois, o melhor de cada um destes três elementos interdependentes como se viu durante esta entrevista: o Miguel revela truques, aponta soluções, identifica problemas no treino e educação de cães e lobbies na área; a Filipa esteve sempre lá a complementar o Miguel e o Zeus, mas é certo que não conseguimos descrever as respostas do Zeus nem a forma como interage com o Miguel. É daquelas coisas que... só visto.

 

CHV: O que é a Pet’s Dream?

Miguel: Antes de eu abrir actividade, amigos e colegas já me pediam para treinar/brincar com os seus cães. A certa altura, tive um problema com um Golden de um familiar, a quem avisei que estava a proceder de forma errada com o cão. Ele teimou e transformou um Golden num cão agressivo. Foi o único cão que me mordeu até hoje. Não fui capaz de castigar o cão porque ele não teve a culpa. Esse episódio motivou-me a continuar a profissão de treinador canino e a optar pelo curso de Medicina Veterinária. Curiosamente, o curso de veterinária aguçou ainda mais o meu interesse pela área do comportamento animal, porque me apercebi que não sabia a razão pela qual se seguem determinados procedimentos ignorando muitas vezes o que os animais estão “a dizer” e porque eu próprio lido com os cães da mesma forma que gostava que lidassem com uma pessoa da minha família. Por outra palavras, o meu trabalho com cães era muito intuitivo e senti a falta de algum suporte teórico que pudesse enquadrar a minha abordagem. Fiz, então, formação na área de treino. Mas, ainda assim, fiquei com o bichinho atrás da orelha e dizia para mim mesmo: “Não pode ser só isto”. Continuei a ler e a estudar e surgiu a possibilidade de colaborar com a Associação Portuguesa para a intervenção com Animais de Ajuda Social (Ânimas), onde eu e o Zeus somo uma das duplas representantes. Por isso, falar da Pet’s Dream sem o Zeus não faz sentido. A Pet’s Dream nasceu do desejo de fazer com que as pessoas percebam realmente o seu cão, o que não é tão simples como se possa pensar. O nosso trabalho não passa por fazer com que os cães sejam robots e façam graçolas, isso é o mais fácil e não tem sentido. Mais importante é, por exemplo, um dono poder passear o seu cão na rua relaxado, sem trela mantendo uma comunicação contínua que lhe permita ter total controlo sobre ele em qualquer situação.

 

CHV: Pode dar um exemplo do que fazem na Pet’s Dream?

Miguel: Há cães que até podem ser bem comportados, mas são muito reactivos a determinadas situações. Normalmente, nestes casos, os donos optam por recorrer a escolas de treino canino. O que sugiro é: esqueçam o treino e vamos trabalhar a compreensão entre o dono e o seu animal. Recentemente, tivemos um caso de uma cadela – a Nala - extremamente reactiva a quase todas as situações de rua. Em 5 treinos ao longo de 4 semanas conseguimos que a cadela pudesse passear no Parque da Cidade (Porto) sem trela, completamente impávida e serena. Isto é a Pet’s Dream: não somos uma escola de treino; ajudamos os donos a melhor compreender os seus cães em todas as suas dimensões: sentimentos, dor, reacções, empatias. Na verdade, não gosto muito de falar sobre o que faço, gosto de mostrar e, por isso, somos das poucas “escolas de treino”, que divulga os vídeos sobre o seu trabalho, sempre que os donos permitem.

 

Muito mais do que hierarquias
 

CHV: Mas esse trabalho é realmente possível em todos os tipos de cães, mesmo aqueles considerados agressivos?

Miguel: Em todo este tempo, ainda não encontrei um cão que fosse realmente agressivo. Por exemplo, há a ideia generalizada de que o comportamento dos cães se resume a questões da sua hierarquia. Não é verdade. Existe uma hierarquia tal como nós temos no nosso local de trabalho ou na escola, mas há muitos mais factores a considerar. E, além disso, as hierarquias entre cães mudam muito rapidamente. Novamente, o exemplo do Zeus. Este cão tem uma capacidade incrível de interacção com os outros cães, mas sem nunca se deixar submeter. Isto é a Pet’s Dream: empatia entre donos e os seus cães e isso pode ser promovido com exercícios específicos. Frequentemente, inclusive entre estudantes de veterinária, julga-se que a hierarquia é uma questão de dominar ou estar acima do cão. Não temos de os dominar, temos de lhes dar as condições para eles estarem relaxados e perceberem que nós tomamaos as decisões mais acertadas sempre que seja necessário. Temos de “guiar” o comportamento do nosso animal.

 

CHV: Que tipo de exercícios fazem?

Miguel: O que eu mais gosto é o toca. A partir do momento em que o cão aprende a tocar em sítios específicos e a recompensa é alta, ele pode estar no meio da rua e, quando acontece algo de muito grave, o cão reage à palavra-chave (e gesto correspondente) que é «toca», pois sabe que vai ter uma recompensa muito alta. Dessa forma, o cão não se envolve nem reage às situações, pois vem à nossa mão, toca-a, cheira-a e entra num estado mental diferente, o que automaticamente promove um comportamento diferente.

 

CHV: Mas por que é tão difícil conseguir-se que os donos consigam que o seu cão passeie com eles dessa forma controlada, sem trela?

Miguel: A resposta a essa pergunta implica vários aspectos desde a forma como encaramos os animais, ao facto das pessoas não terem tempo nem paciência para educar um cão. Tivemos um caso recente de uma cadela a quem a família tratou de forma exemplar em termos clínicos e de bem estar, mas não tinha a energia ou o tempo necessários para ela, o que fazia com que a cadela destruisse a casa toda. Conseguimos reverter muitos dos comportamentos errados, até que um dia a cadela destruiu um puff devido a alterações que estavam a ocorrer à volta dela e essa foi a gota de água que fez com que fosse dada a outra família. No entanto, a cadela apenas tinha reagido a uma alteração que tinha ocorrido na sua interacção com a família. Os cães quando roem algo, libertam stress e, por exemplo, se eles roem a sua própria cama, a situação já é mais complicada e pode estar relacionada com o número de vezes que vai à rua ou se se moveu o ninho do lugar onde estava. Os cães, como as pessoas, precisam de tempo, paciência, regras e rotinas. Temos de conciliar o nosso tempo com o deles e lembrarmo-nos que não são coisas, mas sim animais com sentimentos e necessidades, que muitas vezes não são compatíveis com as nossas possibilidades.

 

CHV: Voltando ao tema da agressividade nos cães que está muito em voga actualmente. Um cão pode realmente ter essa tendência para ser agressivo ou é antes um reflexo do ambiente que existe em seu redor?

Miguel: Há animais que têm, claro,essa tendência, independentemente da raça, tal como nós humanos. O Farrusca, o cão que referi no início e que me mordeu, tinha essa tendência agressiva e era um Golden e acabou por ser abatido por decisão do seu dono depois de ter andado em escolas de treino onde teve treinos em que quase era estrangulado. O problema escalou porque não foi correctamente abordado, mas antes incrementado pelo tipo de tratamento que o treinador lhe infligiu e a falta de regras e rotinas certas por parte do dono. São os donos que têm de tomar a respponsabilidade por guiar o cão. Não há raças más, há raças com predisposições, mas isso não quer dizer nada se a educação do cão for correcta.
 

CHV: Mas de que natureza é essa predisposição? Genética?

Miguel: Há estudos que defendem que se trata de uma predisposição genética. Uma característica foi escolhida ao longo dos anos, tornando-se mais expressiva. Da mesma maneira, os Labradores não foram sempre esta coisa fofa que conhecemos agora, foram sendo alvo de processos de selecção desde os tempos em que eram cães de trabalho. Pode dizer-se que sim, que existem cães “potencialmente perigosos”. Um cão com uma força mandibular de 80 kg é um cão potencialmente perigoso; um labrador é um cão potencialmente perigoso; um cão com mais de 20 kg tem força para ser potencialmente perigoso. Por exemplo, os filmes dos treinos do Adão, um Dogue Argentino, mostram como um cão pode ser mais exigente para o dono em relação à atenção e cuidados a ter e, no entanto, um cão que poderia ser considerado agressivo, porta-se melhor sem trela do que com trela. Certa vez, o dono do Adão telefonou-me quando se deu uma situação na praia com o Adão. Um cachorro aproximou-se, ninguém deu por isso e o Adão foi atrás do cachorro, mas não lhe mordeu. Contudo, a reacção imediata do dono e das pessoas foi “ai que o cão vai matar o cachorro”. É preciso um grande discernimento para perceber o que são reacções e comportamentos naturais dos cães, o que é agressividade e o que é uma brincadeira mais bruta, e perceber os sinais de alerta que os próprios cães emitem, tais como as orelhas arrebitadas para a frente, o que é mais significativo do que quando o cão ladra. Se o cão deixa de ladrar, vai deixar de ter um meio de avisar que algo o “incomoda” e pode passar para o morder sem avisar. O ladrar é apenas um sinal de aviso emitido pelo cão, não é para chatear. Resumindo, não há cães agressivos por natureza, com excepção de casos clínicos e aí saímos da área apenas comportamental e entramos na medicina veterinária de comportamento.

 

Cão que ladra não morde, mas os donos mentem
 

CHV: Portanto, o vosso trabalho, afinal, é tanto com os donos dos cães como com os cães...

Miguel: Sim, tudo passa pela educação e pelo ambiente que os donos proporcionam aos seus animais. A nossa abordagem começa sempre por fazer um questionário aos donos que é dividido em três fases, através das quais conseguimos detectar quando as informações prestadas não são verdadeiras ou são incoerentes. Os donos mentem muito, muitas vees sem se aperceberem. Também existe o problema de, muitas vezes, as clínicas não colaborarem inteiramente com o nosso trabalho, sobretudo nos casos mais complexos. Até porque alguns veterinários abordam todas as dimensões do cão apenas sob o ponto visto clínico, mas quando eu intervenho estou a falar de comportamento animal e de um indivíduo específico, não de fisiologia ou da patologia da espécie ou raça. Por exemplo, os veterinários têm a regra de ouro de não socializar os cães até aos 3 meses, o que, em termos de comprtamento animal, nem sempre é o mais adequado, pois priva-os de um momento essencial no seu processo de socialização com implicações futuras que podem ser graves. Já tive um caso de uma cadela de 1 ano que tremia imenso e a veterinária, com a área de interesse em comportamento, considerou esse sinal clínico normal em consulta. Eu digo sempre, “sou um simples treinador”, mas há situações gritantes. Estou apenas a começar; a Pet’s Dream existe apenas há 6 meses e o meu estudo nesta área tem apenas 3 anos. Apesar de já ter trabalhado com todos os tipos de cães, sou ainda um principiante. A minha primeira reacção é sempre que os profissionais mais experientes têm sempre razão, mas têm de se justificar e conseguir tirar-me todas as dúvidas para eu seguir o que dizem.

 

CHV: Mas essa abordagem de pôr os donos a admitir que o problema está neles e não no cão não deve ser fácil...

Miguel: Eu aí sinto que tenho uma vantagem. Crio naturalmente uma grande empatia com os cães. Consigo, em 10 minutos, o que muitas escolas de treino só fazem em meses e sem nunca desrespeitar a natureza do animal. Toda a minha relação e ensino do cão são baseados na empatia e não na recompensa ou castigo. Tivemos um caso de uma labradora que não ouvia ninguém e, depois de termos trabalhado com ela em um único treino, já procurava o dono. Porquê? Porque o dono não passava tempo suficiente com ela e não sabia comunicar com ela; depois de nos ver trabalhar percebeu os “truques” e como devia “falar” com a sua cadela. Hoje tivemos o seguinte caso: uma pessoa já tinha tido cães. Antes teve um Boxer e agora tem um Labrador. O que acontece é que não se pode comunicar da mesma forma com estas duas raças, cada raça, e mais ainda cada animal, tem a sua faixa comunicativa, o seu interesse específico. Por outro lado, em 90% dos casos é falta de enriquecimento ambiental. Os cãos são um autêntico barómetro do ambiente familiar em que estão inseridos. Se um cão de 1 ou 3 anos começa a roer algo quando nunca roeu nada de especial, a primeira coisa que pergunto é: o que é que se alterou na família?

 

CHV: Outra questão é relativa à punição. Seja para ensinar os caães a fazer as necessidades na rua ou para punir um comportamento.

Miguel: Pois, é uma questão polémica. Tivemos um dono deu um “chega para lá” numa cadela e partiu-lhe duas costelas, mas disse-me que tinha sido só “um chega para lá”...A minha primeira regra de treino quando começo a trabalhar com uma família que não conheço é que, nos primeiros 15 dias, a cadela não pode ser castigada fisicamente. Ela deve ser apenas ignorada; há situações em que o castigo tem de entrar e ignorar o animal já é um castigo. Com o tempo, o comportamento a eliminar vai diminuir. Se castigarmos, o comportamento também vai diminuir, mas à base da repressão, o que nunca é uma solução. Mesmo os estudos que existem são contraditórios, mas há que conhecer o cão e dar-lhe hábitos e rotinas, comunicar. Aquela coisa de esfregar com o focinho do cão no sítio onde o cão urinou não tem sentido. Quando um cão passa muito tempo sozinho em casa, pouco tempo na rua ou pátio e costuma urinar em casa, o truque é trazer um pouco da terra onde ele urinou na rua e deixar ficar no sítio da casa onde ele possa ir quando está aflito. Eles usam o cheiro para aprender como nós usamos os olhos.

 

CHV: A propósito da polémica à volta do caso do pit bull que, no Algarve, esteve envolvido numa situação em que uma criança morreu, o Ministério Público decidiu que os donos de cães potencialemnte perigosos têm de ter formação para isso. Qual a sua opinião sobre este caso?

Miguel: Primeira questão que lhe coloco: quem é que vai dar essa formação? Quem vai avaliar a formação que algumas pessoas já fizeram? Quem vai decidir que o método “A” é melhor que o método “B”? Não nos podemos esquecer que esta lei já tem alguns anos e, até hoje, ainda não saiu nenhuma lista de treinadores certificados. Essa decisão de os donos de animais potencialmente perigosos terem formação é muito boa, mas preferia os modelo dos países onde todas as pessoas que têm cães têm de ter formação, mas, em compensação, os cães podem entrar num shopping...Viu a dificuldade que tivemos em arranjar um lugar para fazer esta entrevista onde o Zeus pudesse estar presente? Um cão bem educado, pode entrar em qualquer lado. Cursos até aos 6 meses são dados por quem? Tenho um curso por uma instituição certificada, mas até hoje estou à espera da resposta da entidade reguladora para a certificação dessa formação. Fiz um outro curso por uma outra instituição e estou a fazer outro fora do país. Fui às Finanças para saber o que deveria fazer para poder exercer a função de treinador canino e disseram-me que bastava abrir actividade. Enviei um pedido de informação à Direcção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) e ainda aguardo resposta há mais de 6 meses. Ou seja, qualquer pessoa pode ser treinador canino mesmo sem qualquer tipo de formação. Se há várias instâncias internacionais que certificam esta actividade, como é que, em Portugal, quando fazemos uma pesquisa mais alargada só aparecem alguns certificados e existem tantos treinadores caninos? Esta é uma questão minada por vários lobbies. Por exemplo, uma pet shop bem localizada tem sempre um treinador, o qual quer ficar sempre com essa pet shop, pelo que baixa os preços e tenta solucionar os problemas com cães de forma rápida, muitas vezes sem resolver o problema real do animal, mas antes o “problema” que incomoda os donos. Resultado: todos os cães a andar de trela a fazerem exercícios iguais e aguns deles com trelas de treino que são uma barbaridade. Isto compensa ao “treinador”, pois a única coisa que fez foi ler uns livros, ver uns porgramas na televisão e, frequentemente, nem abriu actividade nas finanças...

 

Entrevista realizada por: CHV - Centro Hospitalar Veterinário

Zona Industrial do Porto
http://www.chv.pt

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